CARTAS PARA A MINHA MÃE #2

Mais uma netinha, já viste? 

Estás contente não estás? 

Eu sei.

CARTAS PARA A MINHA MÃE #1

Podias estar aqui a molhar os teus pés na chuva que cai furiosamente pelo meio do calor sufocante. Podias estar aqui a cheirar o aroma desta terra de que tanto falaste e do qual tinhas tantas saudades. Podias estar aqui a comer a sopa que fiz com Gimboa, o espinafre cá do sitio e que provavelmente à 55 anos atrás já tinhas provado na sopa feita pela tua mãe. E à medida que ias saboreando a sopa com Gimboa feita por mim, ias recordar-te da tua meninice e de quando comias a sopa feita pela tua mãe neste lugar. Podias estar aqui a contar-me as traquinices que fizeste quando tinhas a idade do meu P. ou da minha M.. Podias estar aqui neste momento sentada comigo no pátio, a apreciar o chilrear dos passarinhos que agora sobe de tom porque a chuva finalmente deu tréguas.

Podias... mas não estás. Pelo menos fisicamente. Não ouço a tua voz, mas sinto a tua presença aqui. E por vezes isso basta-me. Mas outras vezes tantas, não.

Podias estar aqui em carne e osso... e não estás. E isso doí como o catano. Que remédio tenho eu de continuar aqui, apenas te sentindo. E isso vai bastando. 

Mas gostava, nem que fosse por um segundo, que molhasses os pés, nesta chuva, comigo. Ia saber tão bem, não ia...?

RECORDAÇÕES DE INFÂNCIA E A MINHA AVÓ MATERNA

Ultimamente a minha avó materna tem vindo à minha memória com mais frequência do que o habitual. Talvez porque estou actualmente a morar numa terra onde ela já esteve e morou, à quase 80 anos atrás. 

Foi na década de 40 do século passado que a minha avó viajou de Portugal para Angola para se juntar ao marido, o meu avô, que tinha viajado meses antes no âmbito da politica de colonização do Estado Português, quando Angola ainda era uma colónia de Portugal.

Talvez por isso ela me visite mais vezes nas minhas recordações. Talvez...

A última recordação dela apanhou-me à dias de surpresa pois pertence à minha infância e pré-adolescência: cevada acompanhada de torradas feitas em frigideira no fogão e sopa às 4 da tarde.

Não sei qual foi o "gatilho", mas de repente lembrei-me do quanto adorava tomar o pequeno-almoço na sua casa quando era bem pequena: ela punha uma cafeteira alta (daquelas de metal que se amassava toda quando caía ao chão) ao lume com água e quando esta começava a ferver, desligava o lume e deitava três colheres de sopa bem cheias de cevada em pó, da marca Delta - tinha de ser aquela marca, para a minha avó era a cevada mais saborosa - mexia bem e deixava o pó assentar. Enquanto o pó da cevada assentava na cafeteira, a minha avó colocava uma frigideira em ferro, com picos na base utilizável, ao lume no fogão, partia três moletes  - pão de trigo pequeno - a meio e torrava as metades nessa frigideira. Cada metade ficava com uns pontos negros maravilhosos - culpa dos tais picos que a frigideira tinha - e com um sabor extraordinário, irreproduzível por qualquer outra torradeira convencional!

A minha avó não precisava de me chamar duas vezes para eu vir para a cozinha tomar o pequeno-almoço: assim que cheirava a cevada acabada de fazer e o pão torrado ainda quentinho voava para a mesa da cozinha! 
Depois era o delírio: a margarina a derreter no pão, a chávena a aquecer com a cevada coada através de um pano de algodão e o bocadinho de leite a transformar a cevada na meia-de-leite perfeita! 
E ali ficávamos as duas, eu e a minha avó, a saborear aquele pequeno-almoço muito simples mas que me sabia da pura vida, porque era a minha avó que o preparava, especialmente para mim. Lembro-me do seu olhar de serena alegria ao ver-me tragar a meia-de-leite e devorar as quatro metades de pão torrado carregadas de margarina (sim, eram três moletes - um para a minha avó e dois para mim!) com grande satisfação. É das recordações mais singelamente bonitas e doces que tenho da minha infância...

A sopa às 4 da tarde... bem, a recordação da sopa às 4 da tarde é também umas das que guardo com muito carinho: por volta dos meus 12 anos a minha mãe, até à data doméstica, resolve ter um emprego em part-time que implicava chegar a casa por volta das 20H00. A minha avó, que morava a cerca de 15 minutos a pé de minha casa, ia lá todos os dias para tomar conta de mim e do meu irmão . Para ajudar a minha mãe, a minha avó preparava à tarde uma grande panela de sopa para acompanhar o nosso jantar. Lembro-me como se fosse hoje de no verão me sentar com a minha avó no degrau da porta da cozinha, que por ser de mármore era fresquinho, cada uma segurando a sua tigela cheia de sopa acabadinha de fazer. E não era uma sopa levezinha, era daquelas com uma base grossa de batata e feijão e com muito "entulho" - o que nós chamávamos à enorme quantidade de couves que a sopa levava, tudo regado com uma generosa quantidade de azeite. A sopa feita pela minha mãe era muito saborosa mas aquela sopa, feita pela minha avó... era inigualável!

Verão e tigela de sopa quente às 4 da tarde parece algo completamente estranho e impensável. Bem, só posso afirmar que era o melhor dos lanches! Porque era a sopa feita pela minha avó e porque eu a devorava, acabadinha de fazer, na sua companhia....

É curioso que coisas tão simples como estas despertem tão boas sensações e fortes lembranças de alguém. 

Graças a ti Avó! Graças a ti...

EU, TU E NÓS - AS VÁRIAS ESFERAS PESSOAIS E A RELAÇÃO A DOIS


aqui falei sobre o nosso núcleo, sobre sabermos qual é a nossa essência sem a "máscara" dos vários papeis sociais por nós assumidos.

Hoje falo da vulnerabilidade e tentação de nos "perdermos" numa relação a dois, sob a premissa de que se unificarmos interesses, passatempos, opiniões, sonhos e desafios, a relação a dois é verdadeiramente de partilha e tem mais probabilidades de se prolongar no tempo. 

Pois... sabem aquele desejo romântico de encontrar a "alma gémea" e viver feliz para sempre? É uma treta! A sério, é! 

Encontrar a alma gémea implicaria encontrar alguém exactamente com os mesmos gostos pessoais, a mesma opinião sobre como viver a vida, a mesma opção clubística, politica, religiosa, os mesmos sonhos, a mesma visão de si e do mundo. Alguém interiormente igualzinho a si. Impossível! Cada um de nós é único e assim como não há duas impressões digitais iguais, também não há duas pessoas com núcleos exactamente iguais.

Mas... vamos imaginar que até há, vamos imaginar que duas pessoas, pela arte do divino ou sei lá o quê, pensam exactamente da mesma forma, sentem o mundo exactamente da mesma maneira, têm exactamente os mesmos sonhos e vivem os seus dias exactamente na mesma frequência. E que esses dois "gémeos" se encontram, se apaixonam e decidem iniciar uma relação a dois. Vamos lá imaginar isso. Que futuro prevêem para essa relação...?

Eu não prevejo um futuro risonho. Nem sequer um futuro a curto prazo. Porquê? Porque cada um desses gémeos não tem a capacidade de trazer nada de novo, desafiante e diferente para a relação. Seria quase como namorarmos connosco, uma vez que o outro é exactamente como eu. Então, para que preciso do outro, se ele não me traz nada de novo, não me desafia, não me traz nada que eu já não tenha...?

É, naturalmente entre outras factores, pelo facto de vermos no outro a possibilidade de sermos desafiados que se desperta em nós o interesse - a hipótese de sermos deslumbrados, arrebatados, conquistados por alguém diferente de nós. É claro que o aspecto físico é o primeiro "isco", mas depois o que sustenta uma relação que se queira duradoura não é o aspecto físico, mas sim quinhentas mil outras coisas que não se vêem através do olhar... 

Então como é que uma relação a dois, com diferentes interesses, opiniões, opções clubisticas, etc., pode resultar? Através da cedência. Mas não uma cedência qualquer! Falo da cedência da nossa vontade em dominar o outro, em retirar poder ao outro. Ceder no aspecto de contrariar a vontade em mudar o outro para ser mais parecido connosco e aceitar, abraçar o que nele difere de nós. Pois foi essa diferença que fez com que nos apaixonássemos por ele em primeiro lugar...

O que muitas vezes - demasiadas vezes - acontece é que se assiste a um enriquecimento do "NÓS" à custa do "EU". E do "NÓS" e do "TU" à custa do "EU".

Se deixa de existir o "EU", o "TU" até pode existir, mas lenta, progressiva e quase fatalmente deixa de existir o "NÓS". E se deixa de existir o "NÓS", mais cedo ou mais tarde o "TU" vai à sua vida. E como fica então o "EU", que entretanto deixou de existir porque se entregou totalmente e se deixou absorver totalmente pelo "NÓS", que já não sabe quem é e o que fazer com a sua vida?

Assistimos muito a esta situação nas mulheres que assumiram o seu papel de mães toda a sua vida mas que permitiram que só esse papel as definisse, negligenciando o seu feminino, negligenciando a sua pessoa, deixando para trás tudo o resto (até o seu casamento) e que depois, quando os filhos "saem do ninho", vêem-se confrontadas com o vazio interior, com um casamento só no papel, com a tristeza de não saberem o que fazer dali em diante. Porque se esvaziaram totalmente no papel de mães, porque não cuidaram do seu "EU"...

Qual é o segredo então? Não sei se existe um "segredo". Só sei que se eu gosto de decorar blocos de papel, o meu marido não tem de se sentar ao meu lado e cortar alegremente flores e bonecos de papel. Ele não acha piada nenhuma a manualidades em papel. E está tudo bem. Eu não acho nada interessante estar 90 minutos em frente à televisão a ver um jogo de futebol, portanto enquanto o marido faz isso, eu vou ler um livro ou fazer outra coisa qualquer nesse período de tempo. E está tudo bem. Não temos de estar sempre juntos, de fazer as mesmas coisas e pensar da mesma forma, caso contrário era uma valente seca! 

O desafio está em salientarmos as nossas diferenças, ao mesmo tempo que celebramos as diferenças do outro. Como? Respeitando, dando espaço, ouvindo, falando, exigindo. E ao mesmo aceitando. Fácil? Nem por sombras! Mas é este o caminho a seguir para o "EU", o "TU" e o "NÓS" chegarem juntos a "velhinhos"...