SER TOTÓ, PRAIA E O ESSENCIAL

Quando era mãe de uma só criança era uma completa totó! Preocupava-me com tudo e mais alguma coisa, tentava antecipar múltiplos cenários de acidentes domésticos em minha casa, na casa dos avós e na casa dos amigos. Ficava chateada por em casa dos amigos - sem filhos - haver um potencial enorme de idas ao hospital porque a casa deles não era à prova de bebé. Não jantava com os adultos, não ouvia nem participava nas suas conversas relaxadas e abria a boca apenas para relatar as recentes habilidades da minha filha (que muitas vezes se resumiam apenas a um "ontem ela sorriu para mim quando a fui acordar!. Não é uma fofura esta minha filha?!?"). 

As idas à praia requeriam uma hora de preparação em casa - pelo menos - da parafernália de e para a bebé. Se nos lembrássemos de levar as nossas toalhas era uma sorte! e a mala do carro ficava completamente lotada com o saco das fraldas, o saco de muda de roupa, as duas toalhas para a bebé, o saco da comida da bebé, o saco dos brinquedos da bebé e um saquinho pequeno para levar o nosso telemóvel - para tirar fotografias à bebé na praia, pois claro!, o porta-moedas e pouco mais. Hã!, e o tapa-sol para a bebé estar à sombra e o tapa-vento para a bebé não se constipar. 
Depois de meia-hora a acomodar tudo na mala do carro e finalmente arrancarmos para a praia, quando lá chegávamos, tirar tudo da mala era bem mais rápido. Mas carregar tudo isso para a areia era outra história... normalmente era o papá feito burro de carga que levava os 500 mil sacos e eu levava a bebé ao colo, até ao local da areia onde assentávamos arraiais.

Depois nasceu a minha segunda filha, tinha já a mais velha 4 anos. Lembrando-me do stress que tinha sido levar sempre tanta coisa para um dia de praia, com receio de faltar alguma coisa para a minha bebé e concluir sempre - sempre - que afinal não era preciso levar 10 mudas de roupa e praticamente um pacote de fraldas porque a bexiga e intestinos da bebé não iam funcionar mais do que o habitual só porque estávamos na praia, comecei a simplificar a quantidade de parafernália a levar: reduzi o numero de mudas de roupa, o numero de brinquedos (afinal, para a bebé, comer areia é bem mais interessante do que fazer castelos com o balde e pás; e a irmã mais velha queria era estar sempre na água), o numero de fraldas e a quantidade de toalhas de praia - apenas uma por pessoa - tecnicamente dava o mesmo numero de toalhas mas agora era apenas uma para a bebé. 

Ainda levávamos meia-hora a enfiar tudo e todos no carro, mas quando chegávamos à praia o papá burro de carga já tinha uma ajuda - a filha mais velha levava o saco dos brinquedos.

Depois nasceu o meu filho. 8 anos depois da minha primeira filha. E tudo parecia voltar ao mesmo...

Sempre adorei ir para a praia. E depois de ser mãe, assistir ao prazer nos meus filhos da descoberta da areia, do barulho e cheiro do mar, dos tesouros a descobrir (a.k.a. conchas na areia, caranguejos escondidos nas rochas, pocinhas e mais pocinhas onde molhar os pés enquanto ansiosamente se aguarda pelo término da digestão...) era delicioso. Privar-me e aos meus filhos disso estava fora de questão. 

Portanto, depois de muitos Verões a afinar estratégias para não se levar tanta tralha para a praia, depois de ao fim de 10 anos de idas à praia com crianças, a simples ideia de preparar um saco me provocar calafrios pela carga de trabalhos que me ia dar, era hora mais uma vez de simplificar e de destralhar, mas à séria. E realmente levamos a coisa à séria, ao ponto de ficarmos surpresos com a quantidade de sacos que agora levamos para a praia tendo três filhos: 1 saco. Sim, apenas um saco!

Ok, não é um saco qualquer, é bem grande (sabem aqueles sacos azuis do Ikea? Forrei-o com um tecido engraçado e voilá, saco de praia!). Mas leva dentro estritamente o essencial, ou melhor, o que nós consideramos o essencial face à idade que os nossos filhos agora têm: apenas duas toalhas grandes (sim, apenas duas toalhas para cinco pessoas!), uma garrafa de água, protector solar, um balde com pás, o porta-moedas e um telemóvel (para a fotografia e para chamar uma ambulância - descontracção sim mas q.b.). E se for para passar o dia inteiro na praia, ainda enfiamos no saco uma lancheira não muito grande com fruta, sandes e bolachas. E cabe tudo! E não sentimos falta de nada!
E nada de tapa-sol porque afinal os miúdos recusam-se a ficar sentados debaixo dele e nada de tapa-vento - quem tem filhos acima dos 2 anos sabe que nunca vamos precisar de nos resguardar do vento, porque nunca vamos estar sentados a levar com ele, vamos sim andar atrás dos miúdos para nos assegurarmos de que não escorregam de nenhuma rocha ou não se afogam enquanto brincam à beirinha da água. 

Agora vejo aqueles papás a descer a duna de areia com o carrinho de passeio numa mão, o tapa-sol noutra, dois sacos pendurados um em cada ombro e o olhar de desespero quando se dá conta de que ainda vai precisar de carregar aquilo durante algum tempo porque a mamã que leva o bebé ao colo está há 5 minutos a escolher o spot perfeito para criar o ninho perfeito para o seu bebé ter o dia perfeito na praia, enquanto o papá está prestes a ter um ataque de coração tal é o esforço físico de carregar toda a tralha - da qual já sabemos que só vai ser utilizado 5%.

Vejo aqueles papás e mamãs e rio-me num misto de compreensão e gozo porque sei o que estão a sentir - been there, done that. E fico com vontade de ir na sua direcção e dizer-lhes que não vale a pena passarem tanto tempo em casa a preparar tantos sacos e trazerem tanta coisa para a praia. Mas não faço isso. Porque tenho a certeza de que iriam ficar ofendidos comigo. Porque na sua óptica eles assumem que tudo é absolutamente essencial e se não o é agora, pode sê-lo em algum momento do dia. E educadamente iriam mandar-me "dar uma volta ao bilhar grande". Eu sei que o fariam porque eu, à 11 anos atrás, de certeza que o faria também.

Só a vivência das coisas faz com que compreendamos o que é essencial. Como na vida...

A MULHER ANGOLANA E A SUA FORÇA

Tela representando as "Zungueiras" no seu dia a dia.
Créditos: angola-africa.forum-ativo.com

Angola encerra em si diversos contrastes, mas a um sou particularmente sensível: a exaltação na sociedade da mulher angolana como mulher forte e guerreira, ao mesmo tempo que lhe impõe diariamente diversas dificuldades para conseguir igualdade de direitos juntamente com os homens.

Em Angola comemora-se a 2 de Março o Dia da Mulher Angolana. O Dia da Mãe também é celebrado por estes lados, mas a celebração do Dia da Mulher Angolana assume uma importância superior pelo reconhecimento do seu papel activo na luta de resistência do povo angolano contra a ocupação colonial portuguesa, como por exemplo a rainha Ginga Mbandi, num passado longínquo, e num passado recente Deolinda Rodrigues, Irene Cohen, Engrácia dos Santos, Teresa Afonso e Lucrécia Paim, para citar apenas alguns nomes.

Em 1962 foi criada a OMA - Organização da Mulher Angolana - como ala feminina do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que desenvolveu uma influência crucial no apoio às forças guerrilheiras, dentro e fora de Angola. Actualmente, a OMA é a maior organização social do país, com mais de dois milhões e quinhentos mil membros enquadrados em mais de 49 mil secções no interior e exterior do país.

Não obstante o que se faz no terreno por esta e outras organizações similares, há a consciência geral de que a mulher angolana continua ainda a enfrentar inúmeros problemas para a sua plena emancipação, como o alto grau de analfabetismo, a desigualdade nas oportunidades de emprego e de ascensão sócio-profissional e a violência doméstica sistémica.

Principalmente nos meios rurais, persiste ainda uma cultura tradicional de socialização das crianças, em particular das crianças do sexo feminino, apoiada na discriminação da mulher no que ao seu papel na sociedade e no seio da família diz respeito. 

Não é fácil ser mulher em Angola. Para a grande maioria das mulheres, ser mulher em Angola é ser a dona de casa que sustenta a família e que suporta o marido agressivo, que por vezes é polígamo - uma condição própria e cultural nos países de África. 

No entanto, quase paradoxalmente, a mulher angolana é retratada e celebrada como a mulher forte, a guardiã e protectora da família e do lar.

É por isso que quando vejo na rua as zungueiras - as mulheres que vendem na rua os mais variados artigos (com uma margem de lucro ínfima...) - com um filho às costas e a enfrentar 12, 14 e 16 horas de trabalho por dia, todos os dias, 7 dias por semana, a minha reacção é de admiração, de profunda admiração. 

Na Europa debate-se - e muito justamente - o direito a 6 meses de licença de maternidade em detrimento dos actuais 5 meses mas por aqui... por aqui não há licença de maternidade para muitas mulheres. Se não trabalharem, nem que seja por alguns dias, os seus filhos passam fome. Literalmente. E no entanto, apesar de tantas dificuldades que enfrentam, é fácil encontrar-lhes no rosto a doçura e no sorriso o carinho que nutrem pelos seus filhos e família.

São guerreiras sim estas mulheres angolanas. São resilientes, corajosas, fortes sim estas mulheres angolanas.

Eventualmente algumas destas mulheres não acreditarão que possuem tamanha força interior. Mas esse pormenor não lhes tira nem uma grama. São um exemplo estas mulheres. São sim.

EU TENHO MUITO E TU NADA - A PARVA DA DICOTOMIA

"O que é Dicotomia:

Dicotomia é a divisão de um elemento em duas partes, em geral contrárias, como a noite e o dia, o bem e o mal, o preto e o branco, o céu e o inferno, etc..

Com origem no grego dikhotomía, uma dicotomia indica uma classificação que é fundamentada em uma divisão entre dois elementos.

No contexto do direito, muitos autores abordam a dicotomia entre direito público e privado.

Em botânica, também acontece a dicotomia, onde há a divisão de uma célula em duas, dando cada uma, origem a outras células. Ainda na botânica, a tricotomia indica um órgão de uma planta que é subdividido em três.

Há a falsa dicotomia, que mostra uma situação com dois pontos de vista alternativos, e são colocados como se fossem as únicas opções , quando na realidade podem existir outras opções que não foram levadas em consideração, ou podem as duas ser escolhidas juntos."
in http://www.significados.com.br/dicotomia/


Em todas as partes do mundo há desigualdades de vários tipos: sociais, de género, de oportunidades no mercado de trabalho, de acesso a educação, etc.. Enfim... Em todas as partes do mundo.

Mas eu só conheço uma ínfima parte deste nosso mundo: o meu Portugal e agora a minha Angola.

E nesta agora minha Angola, especificamente em Luanda, os contrastes sociais e económicos são visíveis diariamente e a olho nu. Sem hipótese de olhar para o lado e fingir que não se vê. Sem possibilidade de alegar desconhecimento.

Diariamente vejo automóveis a circular cujo valor de compra é 20 vezes superior ao salário mínimo angolano. E vejo muitos automóveis desses. Muitos.

Diariamente também, vejo crianças a brincar na rua com roupa inequivocamente gasta. Demasiadas.

Vejo também diariamente mulheres a carregar mercadoria para venda na cabeça enquanto carregam nas costas o seu bebé, para no final desse dia ganhar apenas o suficiente para colocar uma refeição na mesa à noite.

E diariamente também observo homens e mulheres com roupas, calçado e acessórios de preço tão elevado quanto baixo é o valor de compra do chinelo que outros homens e mulheres usam.

Esta é a dicotomia visível, nua e crua a que assisto diariamente por estes lados. Mas esta não é a dicotomia que mais me choca.

A que mais me choca é a outra, a falsa. A crença na falsa dicotomia social de que existem estados sociais imutáveis, de que é impossível almejar ter uma vida melhor, de que é impossível aos que usam o chinelo barato também poderem um dia vestir e calçar aqueles artigos que para a maioria das pessoas custam o equivalente a um ano de salário. Ou seja, de que quem é rico assim o será sempre e quem é pobre assim o será sempre também, como se essa fosse a ordem natural das coisas...

E a seguir a esta dicotomia falsa, o que mais me choca é a crença de superioridade de alguns sobre os demais, apenas porque pertencem a uma classe social dita "mais alta" ou porque têm muito mais dinheiro do que esses demais; é a crença de que nada podemos fazer para alterar o lado onde nos situamos na sociedade. E que temos de nos resignar a este estado imutável das coisas e aceitar apenas o que vier. Mesmo que a miserabilidade seja o que vier.

Estas crenças são interiorizadas desde tenra idade e têm o potencial de se perpetuar inevitavelmente. 

Até que alguém demonstre o contrário...

24 DE MAIO 2015 - O DIA EM QUE O IMPENSÁVEL COMEÇOU

No dia anterior tinha levado a minha mãe à sessão de apresentação de um livro infantil de uma pessoa minha conhecida. Com ela e com os meus filhos passamos uma tarde relaxada e um final de dia tranquilo.

No dia seguinte fui sozinha com os miúdos ao Mini NOS Primavera Sound - uma indisposição de ultima hora impediu o meu afilhado e compadres de irem comigo. Ainda pensei em não sair de casa pois nunca tinha ido sozinha com os meus três filhos a um evento, uma adulta para três crianças pode bem ser "areia de mais para a minha camioneta", pensei eu. Mas antecipava-se uma tarde tão gira para nós... a lancheira já estava preparada... os miúdos empolgados por irem ao seu primeiro "Festival de Verão"...

Decidi ir, com a certeza de que se acontecesse alguma coisa e precisasse de ajuda, era só pegar no telemóvel e ligar para alguém.

Quando cheguei ao recinto do Festival dou-me conta que o telemóvel tinha ficado esquecido em casa. Mas não fiquei preocupada. Sem perceber muito bem como, sentia-me descontraída e alegre por proporcionar aquela experiência aos miúdos - estavam a vivenciar uma tarde bem diferente num parque fantástico, a ouvir boa música e a fazer actividades super interessantes. E estava sozinha com eles. Mas tranquila.

Como nessa tarde não tinha o telemóvel comigo, não atendi as muitas chamadas que o meu irmão e cunhada fizeram. Não ouvi as chamadas de voz desesperantes que deixaram. Não li as mensagens de aflição que escreveram. Só quando cheguei a casa, já passava das 23H00, é que vi e li tudo isso. E ouvi, quando o meu irmão finalmente consegue falar comigo: "A mãe está no hospital. Desmaiou esta tarde. Suspeita-se que tenha sido um AVC."

E pronto. A partir das 23H00 do dia 24 de Maio de 2015, dei-me conta que enquanto eu estava a divertir-me com os meus filhos no Parque da Cidade em Matosinhos, o cérebro da minha mãe dava o primeiro sinal de que o principio do fim tinha despertado, num workshop de pintura em Oliveira de Azeméis.

A partir desse dia e até ao dia 16 de Julho, foram só altos e baixos de esperanças ganhas e perdidas, de expectativas geradas e frustradas, de angustias escondidas e desesperos mascarados para não desanimar a minha mãe, de aflições e tristezas por ver a vida a fugir-lhe do corpo, a fugir-lhe do pensamento, a esvair-se rapidamente num rol de limitações e complicações médicas. 

A serenidade não teve qualquer hipótese de se chegar perto da minha mãe nem dos seus filhos à medida que, sem que nenhum de nós o dissesse em voz alta ou ousasse sequer pensá-lo por mais do que dois segundos, nos íamos dando conta da chegada do final.

Porque até ao ultimo segundo do ultimo dia, ainda não tínhamos aceitado que o impensável iria mesmo acontecer.

Tenho muitas saudades tuas, mãe...

Nascer antes do tempo para ensinar

Vi no outro dia numa rede social um video que mostrava a evolução, durante um ano, de um bebé nascido prematuro. Tinha nascido 4 meses antes da data ideal...

Esta realidade é-me próxima não porque eu tenha passado por isso com algum dos meus três filhos, mas porque a uma pessoa muito próxima de mim isso lhe aconteceu. Estava já eu em Angola. Sem possibilidade de correr imediatamente para junto dela e a ajudar a lidar com esse momento. Sem possibilidade de lhe poder limpar as lágrimas e a amparar no meu colo.

Acompanhei as suas angústias ao longe. Através de mensagens trocadas. Através do sentir do seu coração. Através das milagrosas fotografias que me enviou.

Talvez por tudo isso eu não consiga imaginar como será ser mãe antes do tempo. Como será ter planeado e gerido expectativas tendo em conta de que as coisas iriam decorrer de uma certa forma e dentro de um certo tempo e depois, de repente e sem que nada o fizesse prever, o mundo desaba à nossa frente e o nosso bebé, antes protegido dentro da nossa barriga, está agora cá fora a correr potencial perigo de vida. 

Não consigo imaginar como se consegue lidar com as ansiedades de saber que por ter nascido prematuro, o nosso bebé pode ficar com mazelas a nível neurológico e/ou físico.

Não consigo imaginar como se consegue arranjar forças para, apesar da profunda aflição e terror sentido por se saber que o nosso bebé luta pela sua vida, olharmos para ele na incubadora, cheio de tubos e fios, e ainda assim nos conectarmos imediatamente a ele e sabermos logo ali - logo ali - que um amor incondicional e inesgotável brota do nosso coração na sua direcção. E que o nosso bebé  o recebe e o sente a cada palavra de amor sussurrada, a cada miminho dado na sua mão minúscula, a cada caricia feita na sua cabecinha quase totalmente tapada por ligaduras.

A estas mães e pais que passam por todo este sofrimento a minha vénia: são pais/mães-coragem! A partir desse momento, e embora possam não o sentir no imediato, revelaram que são mais fortes do que alguma vez poderiam imaginar, são mais resilientes do que acreditavam ser e têm mais amor nos vossos corações do que achavam sentir - amor incondicional e infinito!

A estes bebés-milagre a minha admiração: tão pequeninos mas a manifestarem desde logo a vossa grandeza, pois a vinda antecipada não foi mais do que uma lição de coragem para vocês, mas principalmente para os papás que vocês escolheram.

Todos vocês são Heróis!

Porque tudo acontece por uma razão. E em tudo o que nos acontece, retiramos sempre aprendizagem, força e resiliência. Mesmo que não o sintamos no momento. Mas assim é. 

E sim Amiga, este texto é para ti. Porque te admiro muito!

Quem quiser visualizar o video que inspirou este texto pode aceder aqui.